Review in Portuguese of Braga (2017)

Ruy Braga (2017) A rebeldia do precariado: trabalho e neoliberalismo no Sul global. São Paulo: Boitempo. 272 p. ISBN 9788575595725. R$59; Kindle US$9.20

Resenhado por Andréia Galvão, Universidade Estadual de Campinas, Brazil

 

[This book review is also available in English in Volume 13, Issue 1 of the Global Labour Journal.]

 

 A rebeldia do precariado trata da complexa relação entre neoliberalismo, precarização do trabalho e lutas sociais em diferentes países do Sul global: Portugal, África do Sul e Brasil. Inspirado, de um lado, pelo conceito polanyiano de contramovimento e, de outro, por uma apropriação crítica do conceito de precariado, o livro propõe uma análise original e instigante sobre os impactos do neoliberalismo sobre as classes subalternas. Ao longo de suas páginas, investiga alguns dos mais marcantes movimentos de resistência ao neoliberalismo desde a “crise da globalização iniciada em 2008” (p. 22).

Com base em dados estatísticos, estudos sociológicos e etnografias sobre condições e relações de trabalho, acesso a bens e a direitos nos três países, o livro fornece-nos um rico panorama sobre os casos analisados. Ao mesmo tempo, apoiado na “teoria do desenvolvimento desigual e combinado, articulada à teoria da acumulação por espoliação” (p. 32), procura assentar, em novas bases, os estudos globais do trabalho, conectando o local e o global, e abordando as mobilizações do trabalho em sentido amplo, para além da tradicional análise de greves.

Composto por 9 capítulos que tratam dos 3 países em cada um dos 3 eixos de análise (neoliberalismo, precarização e lutas), mais dois capítulos nos quais o autor apresenta detalhadamente seu arcabouço teórico-metodológico e reconstitui os principais argumentos desenvolvidos ao longo dos demais capítulos, o livro de Ruy Braga tem muitos méritos: 1) mostra que o neoliberalismo muda as condições de luta, mas não silencia os subalternos, nem os condena à passividade. Pelo contrário, estimula diferentes movimentos de resistência à espoliação (de identidades étnicas, de gênero, etc); 2) mostra que o proletariado, a despeito de suas transformações sociológicas e político-ideológicas, se organiza e se mobiliza para enfrentar as políticas de austeridade implementadas por diferentes governos; 3) sustenta que a crise do sindicalismo burocratizado não condena essa forma de organização dos trabalhadores ao desaparecimento; 4) apesar de ter como foco a relação entre sindicatos e trabalhadores precários, dá atenção às alianças entre sindicatos e movimentos sociais, colocando em relevo a interconexão entre mobilizações na esfera da produção e da reprodução.

Partindo do reconhecimento da inestimável contribuição trazida pelo livro e compartilhando, com Ruy Braga, o referencial teórico marxista, teço algumas considerações para dialogar com os achados da pesquisa e estimular o debate.

Antes de mais nada, seria importante explicitar qual é o critério de escolha desses três países como representantes do Sul global para, em seguida, melhor explorar o sentido da comparação entre três casos que, como o livro deixa claro, possuem tanto “inquietantes semelhanças” (p. 68) quanto expressivas diferenças. Ou seja, seria importante aprofundar a reflexão sobre o que as aproximações e analogias, potencializadas pela utilização de um arcabouço teórico comum, permitem iluminar, e o que obscurecem.

Para avançar na explicação, extraindo conclusões a partir da comparação proposta, parece-me importante considerar, de forma mais sistemática, as especificidades de cada um dos países, como: as características da legislação trabalhista, o escopo e a abrangência da ação do Estado, a forma de organização sindical predominante, as tendências político-ideológicas das principais organizações, para melhor situar a relação que estabelecem com os diferentes governos. Pois a identificação das dificuldades do sindicalismo para representar os trabalhadores precários, da existência de lutas fora do local de trabalho e à revelia das direções sindicais, das experiências de auto-organização do jovens trabalhadores desempregados ou subempregados não nos esclarece sobre as razões dessas dificuldades, os limites e os potenciais dessas lutas. O fato de que a aliança entre os precários e os sindicatos pareça ser mais bem sucedida em Portugal do que nos demais países se deve ao nível de direitos ameaçados pelas reformas neoliberais? No Brasil, por exemplo, as dificuldades de se estabelecer uma aliança como essa estão relacionadas tanto às orientações políticas das direções quanto a razões institucionais, relacionadas ao funcionamento da estrutura sindical corporativa. Assim, não se trata apenas dos trabalhadores precários serem hostis aos sindicatos ou dos acordos celebrados pelos sindicatos não serem aceitáveis pelos precários. Os sindicatos dificilmente chegam até os trabalhadores precários, o que faz com que estes não sejam cobertos pelos acordos coletivos.

Uma segunda observação sobre a comparação tem a ver sobre como o texto circula entre as escalas de análise local e global e passa de um nível mais elevado de abstração para estudos de caso que, não apenas comportam diferenças entre si, como se desenvolvem em temporalidades e com intensidades distintas. Se a guinada neoliberal, e o aprofundamento da precarização do trabalho se verificam nos três países, isso se dá a partir de condições diversificadas em termos de direitos de cidadania, nível de proteção social e características dos governos que conduzem a conversão à ortodoxia, sendo possível, inclusive, identificar diferentes fases e contradições ao longo do processo. O livro trata de várias dessas diferenças, uma vez que contextualiza historicamente os casos analisados e reconhece que a promessa de cidadania salarial impactou diferentemente os três países, mas poderia explorar mais suas implicações para a análise.

Ao contrário de África do Sul e Brasil, Portugal foi, durante pelo menos duas décadas, um quase Estado-providência, aproximando-se da cidadania salarial europeia. A integração à União Europeia é um fator essencial para compreender a peculiaridade de sua situação, caracterizada, de um lado, por um período de alargamento dos direitos e pela resiliência de seu sistema da proteção social, e, de outro, por sua subordinação aos ditames da Troika. Esse não era o caso da África do Sul — onde o regime de apartheid racial foi substituído pelo apartheid social, com os sucessivos governos do ANC a partir de 1994 — e nem do Brasil, em que o neoliberalismo começou a ser implementado também nos anos 1990, pelo primeiro governo democraticamente eleito após a ditadura militar (governo Collor, em 1989). Aqui algumas diferenças mereceriam ser destacadas, pois os países transitaram para o modelo de desenvolvimento “pós-fordista e financeirizado” em diferentes momentos e essa transição não é linear, sendo possível identificar modulações e fases distintas: em Portugal, a adesão à ortodoxia, com a redução do orçamento público e dos benefícios sociais, se aprofunda após a assinatura do memorando da Troika, em 2011; no Brasil, a privatização, as reformas trabalhistas e as PPPs foram introduzidas antes dos governos petistas, enquanto na África do Sul, essas políticas foram promovidas pela ANC. Assim, a analogia entre ANC e PT procede em muitos aspectos, sobretudo por sua origem social, pela relação com o movimento sindical, mas há nuances nos modelos de desenvolvimento que os dois partidos implementam (mesmo que ambos sejam considerados como variações do neoliberalismo). Ainda que a informalidade seja historicamente elevada nos dois países, ela não se tornou majoritária nos anos 2000 no Brasil, pelo contrário, até 2014 ela registrou um movimento de queda, ao contrário da África do Sul. O desemprego se reduziu e a situação econômica dos trabalhadores melhorou, a despeito das tendências contraditórias na regulação do trabalho.

A meu ver, nuances entre os governos poderiam ser melhor apreendidas com a introdução de conceitos intermediários, como (neo)desenvolvimentismo (ao qual se refere quando trata do caso sul-africano, mas sem aplicá-lo como conceito, e ao qual faz apenas uma rápida menção quando trata do Brasil, a despeito de todo o debate sobre o tema existente nesse país). Outra possibilidade seria a utilização do conceito de social-liberalismo, que muitos autores utilizam para se referir às reformas neoliberais implementadas por partidos socialistas e social-democratas na Europa.

Há, também, um certo desajuste no tratamento dos casos no que se refere às escalas temporais consideradas. A análise sobre Portugal começa no Estado Novo, passando pela Revolução dos Cravos; sobre a África do Sul, remonta ao apartheid, enfatizando as resistências ao racismo; sobre o Brasil, começa nos governos do PT, fazendo uma rápida referência às greves na transição da ditadura para a democracia. Ou seja, há toda uma reconstituição histórica no caso de Portugal e da África do Sul que não se verifica para o caso brasileiro, talvez porque seja um livro publicado no Brasil e os leitores conheçam sua história, mas também por uma razão de ordem analítica: embora identifique a gênese do “modelo de desenvolvimento pós-fordista” no Brasil nos governos Collor e Fernando Henrique Cardoso (PSDB), Braga considera que esse modelo se consolidou nos “dois governos de Lula da Silva” (p. 106), o que é controverso, pelas razões às quais rapidamente aludi acima.

Ainda no que se refere à temporalidade, o recorte escolhido para demarcar o início da “crise da globalização” poderia ser discutido. 2008 tem, certamente, uma enorme importância, mas seria o início da crise ou um momento em que a crise atinge um novo patamar e afeta mais profundamente os países do centro? Braga aponta a “retomada do ativismo político” (p. 38) no Sul global a partir de então, mas o que dizer dos incontáveis protestos nos anos 1990 contra as políticas neoliberais? A propósito, a guerra da água na África do Sul em 1996 suscita um interessante paralelo com a América Latina nesse mesmo período. Os anos 1990 não são apenas marcados pelo início do altermundialismo, mas também por protestos concentrados no espaço nacional e dirigidos a governos locais, o que é pouco destacado.

Apesar de o autor estabelecer uma diferença entre os ciclos de protesto pré e pós 2008, parece-me haver várias continuidades, tanto em termos de bases sociais mobilizadas quanto em termos de demandas apresentadas e repertórios de ação coletiva. O próprio livro apresenta vários protestos importantes e identifica uma tendência de aumento das greves antes mesmo de 2008, na África do Sul, ou de 2015, quando entende que a crise da globalização chega definitivamente ao Brasil. Isso fragiliza sua tese sobre a pacificação social produzida pelo modo de regulação vigente nos três países até o momento identificado como de eclosão da crise. Concordo que, no Brasil, as tensões se intensificaram após junho de 2013 mas, até então, elas não eram apenas latentes ou subterrâneas, para utilizar as expressões do autor, eram claramente manifestas. Nesse sentido, fórmulas como o “consentimento ativo das direções” e “consentimento passivo dos subalternos”, utilizadas para o caso do “lulismo”, são contrastadas pelos inúmeros exemplos que o próprio livro fornece.

Com relação à base social dos manifestantes, sua caracterização como parte do precariado também merece uma nota crítica. Embora o autor tenha feito esse debate em outros lugares e esclareça que não emprega o conceito nos termos consagrados por Standing, ou seja, como uma nova classe social, mas sim para dar conta das transformações sofridas pela classe trabalhadora, julgo oportuno indagar sobre o alcance explicativo do conceito. Qual é a vantagem de utilizá-lo no lugar do conceito de proletariado, já que a precarização do trabalho é um traço constitutivo das relações de produção capitalistas? Afinal, quem faz parte do precariado? Faz sentido falar em precariado antes do advento da globalização neoliberal, isto é, antes da regulação pública do trabalho ser implodida por reformas que voltaram a mercantilizar o trabalho? O emprego dessa categoria sofre uma certa flutuação ao longo do livro, referindo-se a setores com condições de trabalho bastante distintos: trabalhadores do telemarketing, do comércio, de serviços de limpeza, mineiros, mas também metalúrgicos, trabalhadores da indústria moveleira, bancários, e metroviários. Evidentemente, todos esses setores são afetados pela precarização, mas este é um processo dinâmico e heterogêneo, que incide sobre as formações sociais capitalistas de modos distintos e assume diferentes formas.

Assim, mesmo que as fronteiras entre formal e informal, incluído e excluído sejam borradas com a globalização neoliberal e sua crise, o que poderia justificar a ampliação das fronteiras do precariado?  Seria importante retomar a definição do conceito, para que se possa melhor compreender a relação entre os trabalhadores precários e os movimentos sociais, dentre os quais os sindicatos. No caso da África do Sul, por exemplo, embora diga que a precariedade do emprego é a norma para os negros africanos, em alguns momentos o texto opõe o “vasto precariado urbano” (p. 76) aos trabalhadores sindicalizados, uma minoria com emprego relativamente estável e com acesso a benefícios sociais, sugerindo que estes trabalhadores mais “regulares” não fazem parte do precariado. No que se refere à organização dos trabalhadores, apesar de identificar uma relutância dos sindicatos sul africanos em organizar trabalhadores que não podem pagar pela filiação, não haveria uma dicotomia entre sindicatos, que promovem greves por melhores salários e protestos do precariado por serviços básicos, mas sim uma complementariedade entre ambos. Também em Portugal os sindicatos são aliados na defesa de direitos, de modo que a agenda de sindicatos e movimentos do “precariado” seria mais colaborativa do que competitiva.

Antes de prosseguir, cabe aqui uma pequena ressalva: a utilização da terminologia “novos movimentos sociais” para se referir a esses movimentos acaba recuperando uma oposição, exaustivamente desenvolvida por uma vertente da teoria dos movimentos sociais, entre novo e velho, identificando o sindicato ao velho movimento. Essa denominação não contribui para a análise, por dois motivos: primeiro porque, conforme o autor demonstra, esse ativismo não é hostil aos sindicatos, se dá em colaboração com eles. Segundo, porque não se trata de lutar apenas por reconhecimento, mas também por redistribuição: contra a destruição do Estado social, por moradia, pelo transporte público, contra tarifas abusivas, etc.

No Brasil, apesar da importância de movimentos de moradia na organização dos trabalhadores precários, não temos um movimento equivalente ao Ferve ou aos Precários Inflexíveis, que organiza os portugueses a partir do eixo trabalho e com foco no cumprimento da legislação trabalhista. E o exemplo do call center como expressão da pressão feita pelos trabalhadores precários em relação às direções sindicais deixa de lado um aspecto muito importante: os sindicatos que legalmente representam esses trabalhadores na cidade de São Paulo são filiados a centrais sindicais que têm um perfil político mais conservador. Valeria a pena, portanto, discutir qual é a experiência de politização que esses sindicatos proporcionam a seus filiados, assim como quais são os desdobramentos organizativos das experiências que passam por fora dos sindicatos.

Isso me leva a uma última provocação: Braga faz uma interessante retomada do neoliberalismo como espoliação e como subjetivação, mas não aprofunda esta última dimensão. Sua abordagem prioriza a espoliação, deixando em segundo plano a disciplinarização. Menciona Braga, muito rapidamente, o empreendedorismo e sustenta o autor a impossibilidade de que seja ele bem sucedido na contenção da inquietação social; mas não desenvolve o impacto político-ideológico do neoliberalismo sobre os trabalhadores e suas lutas. Assim, parece-me pertinente levantar a questão: a precarização do trabalho gera somente inquietação? Não pode gerar conformismo? Qual é, afinal, o sentido da inquietação social? Ele é necessariamente progressista? O que essa perspectiva de análise nos diz sobre a possibilidade do surgimento de protestos à direita e da captura de setores precarizados por movimentos conservadores? Como explicar quando os próprios espoliados reproduzem o discurso neoliberal, apoiam o austericídio e elegem governos que implementam esse tipo de política? A abordagem de Braga tem um viés que, a meu ver, é demasiadamente otimista. Embora leve em conta os limites dos protestos, dentre os quais a ausência de internacionalismo, enfatiza as formas de solidariedade e identidade coletiva que, por certo, existem. Mas quais são os projetos em disputa? A resistência ao neoliberalismo significa defender direitos universais, mesmo que esses direitos se restrinjam ao âmbito nacional? Os desdobramentos políticos posteriores a 2016 vêm mostrando que a instabilidade e a radicalização do conflito social têm um outro lado, muito mais sombrio, que não só estimulam o individualismo em detrimento da solidariedade de classe, como alimentam o fascismo. O livro começa com uma breve alusão a esse problema, a partir do Brexit e da eleição de Trump, mas não o retoma, muito embora haja menções, aqui e acolá, ao aumento da polarização política no Brasil e em Portugal e às manifestações xenófobas na África do Sul. Talvez fosse muito cedo, no momento em que ele foi escrito, para perceber as proporções dos desafios que se colocam a um projeto de emancipação social.

Isso não diminui os méritos do livro, anteriormente mencionados. Se as lutas retratadas em suas páginas são, embora promissoras, embrionárias e com resultados frágeis, seu fortalecimento passa por um projeto que, mais do que resistir e enfrentar o neoliberalismo, represente a construção de uma verdadeira alternativa ao capitalismo. Como sinaliza Braga, esse projeto passa, certamente, pelo sindicalismo e pela organização dos trabalhadores precários.

 

NOTA BIOGRÁFICA

Andréia Galvão é professora de Ciência Política na Unicamp, onde pesquisa relações de trabalho, sindicalismo, movimentos sociais e ação coletiva. É autora de Neoliberalismo e reforma trabalhista no Brasil (2007) e co-autora de Política e classes sociais no Brasil dos anos 2000 (2012) e As bases sociais das novas centrais sindicais brasileiras (2015), dentre outras publicações. É integrante do comitê editorial da revista Crítica Marxista e da coordenação nacional da REMIR (Rede de Estudos e Monitoramento Interdisciplinar da Reforma Trabalhista). [Email: agalvao@unicamp.br]